terça-feira, 23 de setembro de 2008

Auto-Antropofagia Noturna

Alguma coisa cricrila no meu quarto. Eu sento, no escuro, e observo. Ou melhor, tento observar. O grande bloco negro que eu encaro me faz ter a impressão de que o que eu ouço é muito menor do que parece. O que me dá a nítida sensação de que é gigantesco.
Poderia ser eu cricrilando, penso eu. Não faria diferença alguma. No escuro, não há distinções. No escuro, não é o que cricrila e o que ouve. No escuro há. O som, o silêncio, o vazio, todos eles hão, simultaneamente.
E se fosse mesmo eu a cricrilar, então as coisas seriam diferentes? Seriam mais ou menos ameaçadoras? Pisco algumas vezes, tentar enxergar é inútil. Penso em negras e brilhantes jabuticabas, doces e polpudas. Molhadas. Penso em trepar nas árvores e chupá-las, e estou prestes a dormir outra vez quando algo cricrila novamente.
Dessa vez, tenho certeza. Algo está à direita. Vem atacar? Ouço um barulho vindo do vão entre a parede e a cama. Monstros. Monstros cricrilantes querem me pegar. Me encolho pro meio da cama e, com sono, tento dormir.
Mais um cri. Outra certeza, quem fez o barulho foi eu. Uma parte de mim, sólida e estabanada, barulhando no escuro enquanto tropeça pelas paredes. Não vejo meu corpo, então não sinto meu corpo. Me apalpo, para ver se falta algum pedaço de mim, mas é difícil dizer assim, desse jeito. Tenho certeza de que algo ínfimo, uma unha ou um dente ou um pelo, se desprendeu e cresceu-vida-própria, indo se bater nos cantos.
O escuro é a consciência de que sou um todo. O todo. Eu inteira sou o quarto, sou tudo. Eu inteira crcicrilo e me afeto com o medo do bicho por trás do barulho. O que me dá medo sou eu. O que me dá sono sou eu. A parte que dorme e a parte que vigia, as portas do armário cuidadosamente fechadas e as portas do armário rangendo e abrindo. Sou eu o monstro que salta no escuro. Sou eu o inseto que se prendeu no globo de luz.
Primeiro, eu me aperto entre minhas palmas verdes e pegajosas. Depois, eu me arrasto até minha cama e desliso suavemente sobre mim, me adormecendo. Me consumindo. Silenciosamente.

4 comentários:

Anônimo disse...

Migrando...
queria ter sua capacidade criativa *o*
o que posso dizer? gostei, me deu vontade de cricrilar

Anônimo disse...

Doce Kafka

Anônimo disse...

Fiquei grilado, claro.
Manoel Carlos

Alexandra disse...

Vi você no escuro do quarto criquilando rsrsrsrsrsrs. Muito bom!